segunda-feira, 23 de junho de 2008

Vida de Gado, por Adriana Facina - Retirado do Site: www.fazendomedia.com


13.06.2008 Vida de gado

Vocês que fazem parte dessa massa

Que passa nos projetos do futuro

É duro tanto ter que caminhar

E dar muito mais do que receber

E ter que demonstrar sua coragem

À margem do que possa parecer

E ver que toda essa engrenagem

Já sente a ferrugem lhe comer

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!

Lá fora faz um tempo confortável

A vigilância cuida do normal

Os automóveis ouvem a notícia

Os homens a publicam no jornal

E correm através da madrugada

A única velhice que chegou

Demoram-se na beira da estrada

E passam a contar o que sobrou!

Êh, oô, vida de gado Povo marcado

Êh, povo feliz!
O povo foge da ignorância

Apesar de viver tão perto dela

E sonham com melhores tempos idos

Contemplam esta vida numa cela

Esperam nova possibilidade

De verem esse mundo se acabar

A arca de Noé, o dirigível,

Não voam, nem se pode flutuar

Êh, oô, vida de gado

Povo marcado

Êh, povo feliz!

"Admirável gado novo", de Zé Ramalho

Na semana passada tive de passar pela experiência que é rotina para milhares de pessoas que utilizam os serviços das Barcas S.A.: fazer a travessia para Niterói em horário de rush. Todos que vivem isso sabem: filas imensas, passageiros em pé por superlotação, desrespeito ao direito de grávidas, portadores de deficiências e idosos, gente passando mal por causa da aglomeração na estação, barcas sem ventilação adequada, já apelidadas de saunas ambulantes pelo povo, passagens muito caras (2,50 a viagem). A polícia sempre mobilizada, com carros estacionados nas estações, a postos para defender o monopólio de uma possível e justificada revolta popular. Afinal, isso não seria algo novo. É só lembrarmos, por exemplo, da Revolta da Cantareira, ocorrida em 1961, que incendiou a cidade de Niterói.
A empresa Barcas S.A. transporta mais de uma milhão e meio de passageiros todos os meses, segundo estatísticas publicadas em seu site. Com a passagem a 2 reais e 50 centavos, mais aluguel de espaços para lojas e lanchonetes nas estações e dentro das próprias barcas, bem como a venda de espaços de publicidade, pode-se perceber que o faturamento é realmente apetitoso. De transporte popular, com preços baixos, a barca tornou-se um amálgama pós-moderno de consumo, velocidade e limpeza estética supostamente civilizados com a barbárie expressa na superlotação, no desconforto e na insegurança. Vendedores de jornais não podem mais anunciar as notícias do dia, o que não deixava de ser uma forma de comunicação popular. Pregadores não podem mais fazer seus discursos. Ninguém está autorizado a cantar, batucar, fazer performances que marcavam a antes divertida viagem. Nem sequer a paisagem da Baía de Guanabara se desvenda nas janelas da nova gaiola.
Agora temos pães de queijo com mate, limpinhos e caros, jornaleiros mudos, moças de shortinho vendendo bebidas e um povo mudo indo para casa ou para o trabalho. Acho que esse ambiente ascético cumpre um papel ideológico também. Sob a aparente civilidade das novas barcas, é mais difícil interagir, trocar experiências e se revoltar contra os absurdos gerados pela associação de serviço de má qualidade, com altos preços, sustentados por uma generosa complacência do poder público.
Nos ônibus, a mesma coisa. Mais limpos e à vezes até com ar condicionado, levam motoristas transformados também em cobradores, cuja atenção no trânsito têm de ser dividida com a tarefa de receber dinheiro e dar troco corretamente. Em Niterói, uma das passagens proporcionalmente mais caras do Brasil, pois se cobra 2 reais por percursos muito curtos, algumas empresas transformaram seus ônibus em verdadeiras arapucas, com somente uma entrada de passageiros e janelas estreitas, que colocam os passageiros em risco em caso de acidente. Alguns ônibus da empresa Fortaleza, linha 53, motoristas-trocadores, têm uma roleta muito pequena e freqüentemente vejo pessoas entaladas, com dificuldades de transpô-las e, como os bancos e suportes de mãos ficam muito distantes, tropeçando quando o ônibus arranca. Estranhamente, os muitos fones de ouvido que vejo nos ônibus me parecem ter algo a ver com as poucas reclamações e expressões de indignação com essa situação.
Esse sistema de transporte público também ameaça o direito de ir e vir. O preço abusivo das passagens contribui de modo decisivo para a criação de guetos nas cidades, pois se locomover é algo cada vez mais dispendioso e difícil. São muitos os jovens da periferia do Rio de Janeiro que não conhecem o centro da sua cidade, que nunca circularam para além das imediações dos seus bairros, que são privados do direito de buscar trabalho, lazer e novos horizontes.
Desnaturalizar esse transporte desumanizado, questionar e protestar contra os administradores dessa nossa cotidiana vida de gado é fundamental para qualquer projeto político que se queira realmente popular e transformador.

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